Relato de parto

De repente, Madalena saiu. E eu ainda não acreditava que era real. Eu olhava para ela e só sabia que não queria nunca mais me separar. Eu era ela. Ela era eu. Nada mais importava. Ninguém mais importava. Qualquer assunto que não fosse ela simplesmente se tornava banal pra mim. Eu nunca tive tanta vontade de mudar o mundo – por ela, para ela. Toma tudo que eu posso te dar, filha. E eu dei.

Eu estava de 36 semanas quando soube que meu sangue não filtrava as toxinas e mandava tudo direto pra ela. Senti culpa. A médica percebeu. “Não vai precisar fazer uma cesariana. E não é culpa sua.” Tive colestase gestacional. Tomei remédio por uma semana e não adiantou – ao invés disso, dobrou o nível. Indução marcada para 22 de fevereiro, sábado de carnaval.

Introduziram em mim um balão que iniciava a dilatação, mas meu corpo entendeu errado e começou a realizar contração para “parir” o balão. Então, me desceram para sala de parto, onde diminuíram o diâmetro dele e fiquei ali, esperando. Quando tirei, fui dançar, fazer agachamento, pular… Tudo por uma bolsa estourada. Mas Madá estava curtindo o bloquinho da barriga e não estourou. Me colocaram uma agulha com um ganchinho na ponta e um “tec” fez o serviço.

Ouve música, pula na bola, faz piada, toma ducha, medita. E elas vieram. As contrações do parto finalmente vieram, seguidas do aumento natural da dilatação. E começaram a ficar intensas. Como sempre faço, fingi que não doía. Ri de mim mesma, acenei para quem olhava. Disse que estava tudo bem. Fui andar pelo hospital, porque ainda não havia chegado o trabalho de parto ativo.

O tempo entre as ondas aumentou (pra mim. Mas diminuiu no tempo real). A força com que elas vinham também. Eu dançava. Balançava para os dois lados, olhava em volta e sorria. Havia um bicho querendo sair de dentro de mim e não é de Madalena que estou falando. Uma onça, leoa, loba. Chame do animal que quiser. Mas veio! Veio com tanta força que eu agachava segurando onde desse, virava os olhinhos e dizia pra mim mesma: isso não é dor, é amor.

Literalmente – a Ocitocina natural que meu corpo vomitou em cada célula estava fazendo um belo trabalho. Eu disse que não conseguiria ir até o fim e a parteira disse que era mentira. Eu disse que iria morrer, ela repetiu que não era verdade. Eu pedi anestesia e ela, respeitando meu plano de parto, perguntou se eu não queria esperar, que já estava quase lá.

Eu esperei. Eu me enfiei na ducha quente. Eu Urrava com a força daquele animal que crescia e nascia em mim. Animal mãe. Pedi mais algumas vezes pela anestesia, continuei repetindo aquelas mentiras. Eu gritava “por quê?”. Não deu tempo. Quando o anestesista apareceu na porta, claramente assustado com minha posição e grito selvagens, Madalena coroou.

E, graças ao bom universo, eu não levei agulhada na coluna. Subi de quatro na cama e, num instinto inconsciente de patriarcado que oprime, deitei de barriga pra cima – é a pior posição pra parir, mas o cinema introduziu isso em mim e, num ato impensado, fiz. Ouvi alguém mandando empurrar. Pensei “é agora”. Eu entendi a expressão “tirei força do útero”. Eu inspirei e empurrei, num grito que durou uma eternidade. Eu segurava o braço de alguém, mas não tenho ideia de quem era. “Mais uma vez!”. Empurrei em outro grito e senti um espaguete saindo de mim. Eram as perninhas. Ouvi um grito rápido e fino. Era minha filha que, ainda presa pelo cordão pulsando, dormia calmamente sobre a minha barriga. Eu não conseguia chorar. Estava num tipo de estado de choque – soluçava de choro, mas não saíam lágrimas. Olhei para cima e vi Lucas cortando o cordão. Ela subiu, pele com pele. Uma toquinha. Pegou meu peito esquerdo e ali ficou, enquanto eu paria a placenta. Saiu inteira, não quis levar. Entendi que ali morria uma parte de mim para fazer nascer uma mulher bicho. Desapego, pensei. Apego – as 24 horas que seguiram foram só nossas. E os 30 dias também. Ela dormindo em cima de mim, pele com pele, e mamando vez ou outra. Estávamos ambas cansadas. Começou ali uma conexão que pode ser estudada por anos, mas só é possível sentir.

A enfermeira chorava. Lucas chorava. Madalena e eu tentávamos entender o que estava acontecendo. Eram 21h17 do dia 23 de fevereiro, domingo de carnaval – frio na Catalunya. Eu desmaiei no primeiro banho sozinha. Passamos o carnaval no hospital. Na quarta-feira de cinzas, quando a vida volta ao normal, eu fui para casa. Meu novo normal começou ali. Treze dias depois, pandemia declarada e confinamento obrigatório.

5 comentários em “Relato de parto

  1. Aí filha, chorei tudo de novo! Vocês foram guerreiras,! Você parindo lá dentro e do outro lado eu rezava, pedindo ao Universo que te desse toda força do mundo! Sua vó, seus tios, duas primas, seus amigos, todos estavam torcendo por vocês. A Madalena veio movimentando muita energia positiva! Amo vocês!❤️❤️

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